Quando o assunto são taquicardias supraventriculares, dois dos diagnósticos mais comuns na prática clínica são a Taquicardia por Reentrada Nodal (TRN) e a Taquicardia Atrioventricular por Reentrada (TAV ou AVRT). Ambas cursam com QRS estreito e ritmo regular, ambas são reentrantes, mas há uma diferença fundamental entre elas: o envolvimento de vias acessórias. E é aqui que começa a confusão.
Neste artigo, você vai entender a diferença entre via acessória verdadeira e duas vias nodais, e por que TRN não tem via acessória anatômica, mesmo que algumas aulas possam dar a entender o contrário.
O que é TRN?
A Taquicardia por Reentrada Nodal (TRN) é causada por uma reentrada que ocorre inteiramente dentro do nó atrioventricular (nó AV). O que existe aqui são duas vias funcionais dentro do próprio nó:
- Via lenta: conduz lentamente, mas tem um período refratário curto
- Via rápida: conduz rapidamente, mas tem um período refratário mais longo
Durante uma extrassístole atrial, por exemplo, a via rápida ainda pode estar refratária, obrigando o impulso a descer pela via lenta e subir pela via rápida, completando um circuito de reentrada. Esse looping perpetua a taquicardia.
Importante: essas duas vias não são anatômicas ou independentes do sistema de condução. Elas são variações funcionais do próprio nó AV. Por isso, a TRN não é causada por uma via acessória anatômica verdadeira.
E o que é TAV/AVRT?
A Taquicardia Atrioventricular por Reentrada (TAV ou AVRT), por outro lado, é caracterizada por um circuito de reentrada que envolve duas estruturas distintas:
- O nó AV
- Uma via acessória anatômica extracondutora, ou seja, uma ponte elétrica fora do sistema normal de condução
Essa via acessória pode ser:
- Manifestada no ECG (como no Wolff-Parkinson-White, com onda delta e PR curto)
- Ou oculta, ou seja, não aparece em ritmo sinusal, mas está presente e ativa apenas durante a taquicardia
Durante a taquicardia, o impulso desce por uma estrutura (geralmente o nó AV) e sobe pela outra (a via acessória), completando um circuito. Esse mecanismo pode gerar:
- AVRT ortodrômica (QRS estreito)
- AVRT antidrômica (QRS largo)
A confusão: TRN tem ou não tem via acessória?
A resposta correta é: não tem — pelo menos não no sentido clássico de via acessória anatômica.
É verdade que a TRN envolve duas vias, e por isso, alguns professores ou livros podem se referir informalmente a uma “via acessória nodal”. Mas isso não significa que haja uma estrutura anatômica extra ligando o átrio ao ventrículo, como acontece nas vias acessórias da AVRT.
Em resumo:
TRN | TAV / AVRT | |
---|---|---|
Via acessória anatômica | ❌ Não | ✅ Sim |
Local da reentrada | Dentro do nó AV | Entre nó AV e via acessória |
ECG típico | RP < 70 ms, P sobre o QRS | Pode ter onda delta em ritmo sinusal (WPW), ou RP longo |
Prognóstico | Geralmente benigno | Pode ter risco em FA com pré-excitação |
Como Diferenciar TRN e TAV/AVRT pelo ECG?
Tanto a TRN quanto a TAV (AVRT) costumam se apresentar como taquicardias supraventriculares com QRS estreito e ritmo regular. Mas há diferenças sutis e importantes que ajudam a distingui-las:
1. Intervalo RP (tempo entre o início do QRS e a onda P)
Situação | TRN | AVRT ortodrômica |
---|---|---|
Intervalo RP | Curto (< 70 ms) | Mais longo (> 70 ms, geralmente 90–150 ms) |
Motivo | A onda P está embutida no QRS ou logo após | A condução retrógrada pela via acessória demora mais |
2. Onda P retrógrada
- TRN:
- Dificilmente visível
- Pode causar:
- Pseudo-R em V1
- Pseudo-S em DII, DIII, aVF
- Está embutida ou logo após o QRS
- AVRT ortodrômica:
- A onda P retrógrada aparece nitidamente após o QRS
- O intervalo RP é maior
- Pode aparecer com polaridade negativa em DII, DIII, aVF
3. Presença de onda delta em ritmo sinusal
- TRN: Não tem onda delta
- AVRT (em paciente com via acessória manifesta como WPW):
- Em ritmo sinusal, pode haver:
- PR curto (< 120 ms)
- Onda delta (ascensão lenta do QRS)
- QRS largo
- Em ritmo sinusal, pode haver:
4. Morfologia do QRS
- Se estreito, significa que a condução ventricular está ocorrendo pelo nó AV e sistema His-Purkinje normalmente (mais comum em TRN e AVRT ortodrômica)
- Se largo, considerar:
- AVRT antidrômica (via acessória conduz anterógrada)
- TRN com aberrância da condução intraventricular
Resumo prático para o ECG:
Critério | TRN | AVRT (ortodrômica) |
---|---|---|
QRS | Estreito | Estreito |
Ritmo | Regular | Regular |
Onda P | Sobreposta ou logo após QRS | Após QRS, visível, RP longo |
Intervalo RP | < 70 ms | > 70 ms (geralmente 90–150 ms) |
Pseudo-R em V1 / Pseudo-S | Frequente | Incomum |
Onda delta no ritmo sinusal | Ausente | Pode estar presente (WPW) |
Via acessória | Não anatômica (intranodal) | Sim, anatômica (extra-nodal) |
Dica clínica importante:
- TRN é a taquicardia supraventricular paroxística mais comum nos adultos
- AVRT é mais comum em pacientes jovens com WPW
- Se a taquicardia foi revertida com adenosina, isso não ajuda a diferenciar, pois ambas são sensíveis à adenosina.
Conclusão
Entender a diferença entre TRN e AVRT é essencial para o diagnóstico correto e para o tratamento adequado. A principal chave é lembrar que:
- TRN é intranodal e funcional, sem via acessória anatômica.
- AVRT envolve uma via acessória anatômica verdadeira, conectando diretamente o átrio ao ventrículo fora do sistema nodal.
Essa distinção influencia diretamente a interpretação do ECG, a indicação de medicamentos, e até mesmo a decisão por ablação. Em caso de dúvida, o estudo eletrofisiológico pode confirmar o mecanismo.